Autoconhecimento é o nome dado para o ato de conhecer-se do sujeito. Não é possível imaginar, à primeira vista desta definição, algum sujeito no mundo para quem o referido ato seja de todo não realizado. Quem poderia ser capaz de ignorar completamente a si mesmo enquanto vive no mundo?
Poderíamos portanto dizer que a diferença entre o sábio e o ignorante, no que diz respeito ao autoconhecimento, não é uma diferença entre presença e ausência de conhecimento, mas unicamente entre diferentes intensidades de conhecimento. O ignorante, ainda que conheça a si mesmo, conhece-se pouco, cônscio apenas das camadas mais superficiais e imediatas do seu modo de ser, em contraste com o sábio ciente das sutilezas mais íntimas e profundas da própria mente.
Por profunda que seja, entretanto, essa diferença de intensidade não é nada mais do que uma diferença entre conteúdos objetivos da consciência. O que é que um “sábio” conhece, afinal de contas, quando dizemos que ele se conhece mais do que um ignorante? O que quer que seja, é algum conteúdo mental do qual ele é consciente.
Suponha um sujeito que se dá conta, depois de anos de psicoterapia, de que anseia pelo acolhimento da mãe e reconhecimento do pai em tudo que faz no mundo. O fato é que a consciência dessa ânsia não é idêntica à ânsia. Se fosse não poderia nem mesmo diferenciar-se dela para reconhecê-la.
Conhecer-se a si mesmo implica, pois, diferenciar-se de si mesmo. Não exatamente de si mesmo, na verdade, mas de algum conteúdo que estava previamente como que colado à consciência, como uma lente de contato aos olhos. O sujeito que antes buscava constantemente a aprovação dos pais, o fazia na medida em que não estava consciente desta exigência interna. Ele era, por assim dizer, essa exigência. Ao torná-la consciente, ao mesmo tempo a transcende, tornando-se dela diferenciado.
O sujeito que assim realiza o ato de conhecer é sempre distinto daquilo que ele conhece, de maneira análoga a como um continente é sempre distinto do seu conteúdo. Apreender o sujeito cognoscente em uma cognição é, por definição, tão impossível quanto cercar o espaço. Por isso, quando o que está em jogo é o autoconhecimento stricto sensu (o conhecimento do conhecedor de todos os conhecimentos) o nosso sábio não se distingue qualitativamente do ignorante. Por mais conteúdos de conhecimento sobre sua pessoa que possa ter acumulado na vida, ele continua fundamentalmente ignorante de si.
A tradição oriental, particularmente, sempre esteve atenta ao caráter ambíguo do autoconhecimento, que tende, quase irresistivelmente, a tornar-se alterconhecimento: conhecimento de outro, de algo do qual nós somos — pelo próprio ato de conhecê-lo — diferentes. Daí a impressão de “misticismo” das filosofias orientais, as quais, ciosas da dificuldade de falar sobre o assunto, acabam se expressando por meio de paradoxos.
— “O que não é conhecido pela mente (yanmanasā na manute), mas pelo qual a mente conhece (yena mano matam), ensina o professor no célebre diálogo da Kenopaniṣad. — “Só isso, saiba, é a realidade (tadeva brahma tvaṃ viddhi), e não aquilo que você imagina como alguma coisa (nedaṃ yadidam upāsate). E prossegue: — “Se você acha que conhece essa realidade como a palma da sua mão (yadi manyase suvedeti), então você entendeu muito mal o que eu falei (dabhram eva tvaṁ vettha)”.
Neste contexto da filosofia védica ou hindu, poucos textos são tão celebrados quanto os Yogasūtras, certamente pela popularidade que a prática de yogāsanas alcançou no mundo inteiro. Não acho que me arrisque em dizer, contudo, que poucos textos são tão mal compreendidos, o que, longe de ser uma surpresa, é apenas a confirmação cabal da sina do autoconhecimento de sempre se alterar, inadvertidamente, nos moldes de um conhecimento empírico usual (no qual um sujeito capta um objeto).
É na clave dessa má compreensão que frequentemente se interpreta, por exemplo, o conceito de nirodha (usado pelo autor, Patañjali Maharṣi, na definição de yoga) como uma restrição das atividades mentais, um lockdown (para usar o termo da moda) dos pensamentos, como se o asamprajñāta-samādhi (compreensão intuitiva do sujeito sobre si mesmo, meta final do yoga) fosse o equivalente a uma injeção de propofol na veia.
É claro que aí não se faz a menor ideia de por que Patañjali gasta seus preciosos aforismos prescrevendo, antes do asamprajñāta e como sua etapa preliminar necessária, uma série de samprajñāta-samādhi-s, apreensões conceptuais do sujeito nas quais ainda resta alguma dualidade conhecedor-conhecido. Para que perder tempo com conhecimentos “teóricos”, quando o que se visa é uma experiência na qual eles estão ausentes e que lhes é completamente indiferente? É meio como um médico que, antes da cirurgia, se empenhasse em ensinar ao paciente os princípios da dor e da anestesia, para só depois, finalmente, desligá-lo com a injeção. É claro que não faz sentido.
O que faz sentido é entender os Yogasūtras como uma rigorosa descrição e guia do processo psicológico por meio do qual um certo tipo de pensamento (um “pensamento claro — sattva-guṇa-pradhāna-vṛtti“), diligentemente cultivado durante toda a prática espiritual, por fim reconhece a própria limitação e, num grand finale discriminativo, se abandona, deixando o palco da mente livre para o espetáculo solo da luz que o ilumina.
Não se trata, caro leitor, como espero tê-lo feito pressentir, de um processo “intelectual”, no sentido de um estudo conceitual árido. Você não é, enfim, um conceito (e para o caso de considerar-se “árido” existem cremes hidratantes na farmácia). Essa é a beleza do caminho e também a razão pela qual ele deve ser guiado por alguém experiente, que não caia na armadilha de deixar os conceitos encobrirem aquilo que deveriam deixar brilhar.
Que legal Luciano. Gosto dos seus textos e da sua didática. Animada com esse seu projeto.
Obrigada pela iniciativa.
Ok 🙏📿🌺
Que legal Luciano. Gosto dos seus textos e da sua didática. Animada com esse seu projeto.
Obrigada pela iniciativa.
Om 🙏📿🌺
Muito bom Luciano. Saudade de aprender com seus textos. Sucesso a vc👍
“ o conhecer-se-á si mesmo implica, diferenciar-se de si mesmo.
Não exatamente de si mesmo, mas de algum conteúdo....”
Maravilha! Puro auto conhecimento 🙏 grato.
"Essa é a beleza do caminho e também a razão pela qual ele deve ser guiado por alguém experiente, que não caia na armadilha de deixar os conceitos encobrirem aquilo que deveriam deixar brilhar."
Professor querido, quantos belos textos. Prossiga, por gentileza...
Om