Yogaterapia

Dependendo do ponto de vista através do qual a encaramos, a prática do Yoga pode ser “definida” de diferentes maneiras. Batendo o olho nas afirmações de natureza metafísica que Patañjali, nos seus Yoga-sūtras, faz a respeito da natureza do mundo (II – 15), dos meios válidos de conhecimento (I – 7), do sujeito (II – 20) e de Deus (I – 24), um filósofo não hesitaria em classificar o Yoga como uma filosofia. Do mesmo jeito, atraído pela lista de preceitos morais (II – 30) ou pela recomendação do nome de Deus como meio eficaz para a remoção de obstáculos (I – 28, 29), um religioso veria facilmente nos sūtras um eco da sua religião, assim como o psicólogo encontraria princípios da sua prática clínica na descrição das aflições (kleśas) da mente humana (II – 3). 

E assim por diante, o Yoga, na sua grandeza, se presta às mais variadas interpretações, como o elefante que, tateado pelos homens cegos, se prestou a ser pilastra, lança e corda (conforme foi tocado na perna, presa e rabo respectivamente). Há quem experimente o Yoga como uma ciência da mente, uma arte de viver, uma pedagogia, uma cultura… Cada qual com sua razão para tanto, justificada em grande medida.  

O Yoga em si, entretanto, em sua acepção mais própria, não é nenhuma dessas coisas. Yoga é terapia. Não no sentido de psicoterapia (freudiana, lacaniana, junguiana, etc.) que nos acostumamos a associar com a palavra, mas, mais fundamentalmente, no sentido de uma terapia existencial.

Quem assim afirma não sou eu. No começo dos seus comentários aos sūtras de Patañjali, Śaṅkarācārya, introduzindo o propósito fundamental (prayojana) do Yoga, diz que este pode ser explicado através da ciência da terapêutica (cikitsā-śāstra) e suas quatro divisões (catur-vyūha): doença (roga), causa da doença (roga-hetu), saúde (ārogya) e remédio (bhaiṣaja).

Terapêutica (cikitsā) é o ramo da ciência médica (ayurvédica, neste contexto) que lida com o tratamento das doenças, a aplicação de remédios. É uma ciência da cura. Ela parte, obviamente, da pressuposição da doença, roga. No caso da terapêutica do Yoga, a doença é duḥkha, o sofrimento. “Heyaṃ duḥkham anāgatam – O sofrimento que ainda não veio é o que deve ser evitado” (II – 16).

Mas o sofrimento de que trata essencialmente a Yogaterapia não é o causado por enfermidades físicas ou mentais específicas, já que para tanto existe a medicina propriamente dita (ayurvédica ou qualquer outra). É preciso lembrar, ademais, que, segundo os sūtras (duḥkham eva sarvaṃ vivekinaḥ, II – 15), quem experimenta maximamente o sofrimento do mundo não é uma pessoa debilitada ou perturbada, mas aquela saudável por excelência (a pessoa lúcida, vivekin, para quem mesmo os prazeres são fonte de sofrimento). Foi por este motivo que chamei o Yoga de terapia existencial: porque a doença que ela trata é a doença da existência, bhāva-roga ou saṃsāra-roga: o sofrimento da vida que todos nós — saudáveis ou doentes, alegres ou tristes, ricos ou pobres — experimentamos.

Depois de definir a doença, o segundo passo da terapêutica é a determinação de roga-hetu, a causa da doença. A natureza da causa revelará o caminho do tratamento. Nos sūtras, Patañjali afirma que a causa universal da doença da existência (heya-hetu) é a conexão (saṃyoga) do ser consciente (draṣṭṛ) com aquilo que ele vê (dṛśya) (II – 17).

Isso quer dizer que não é possível alguém sofrer sem se identificar com algum conteúdo mental. Aniquilar o processo mental, contudo — que à primeira vista poderia parecer uma linha de tratamento possível — não é desejável. Primeiro porque uma vida de anêmona ou estrela-do-mar (nada contra as anêmonas e estrelas-do-mar, nota dos meus advogados) não pode ser o propósito de um nascimento humano; mas, mesmo se fosse, o fato da mutabilidade da existência — um ser humano que, por qualquer motivo, meritório ou condenável, venha a se tornar uma anêmona feliz pode, por quaisquer outros motivos além do seu controle, vir a se tornar novamente uma pessoa com contas a pagar e problemas com a mãe — tal fato torna esse “tratamento” apenas um paliativo, e não um verdadeiro remédio. 

A possibilidade que resta de cura real, de eliminação definitiva da identificação com os processos mentais, é a possibilidade dessa identificação ser fruto de uma ignorância e de uma confusão. Porque é da natureza da ignorância e da confusão criar problemas sem que de fato exista algum. E o que não existe nunca existiu, nem mesmo enquanto você achava que existia; não pode, portanto, voltar a ser. Só pode haver, portanto, um remédio definitivo para a doença da existência caso ela seja fruto de um engano.

E é isso mesmo, para alegria do paciente, que o doutor Patañjali diagnostica como a causa da identificação do ser consciente com os seus processos mentais. Sim, trata-se de uma confusão descabida, uma loucura, algo como aquele caso, eternizado como lenda urbana, do cara que tomou LSD e passou o resto da vida achando que era um copo de suco de laranja.

Pode parecer exagerado dizer que a doença do sofrimento humano, tão real, seja fruto de mera ignorância e confusão, mas é isso o que afirmam as escrituras védicas (o CID-10 consultado por Patañjali). A lógica, por inusitado que pareça, diz o mesmo. 1) Você não é um copo de suco de laranja 2) porque você o copo de suco de laranja. 3) Você seus sentimentos e seus pensamentos; 4) logo, seus sentimentos e pensamentos não são você.  

Tasya hetuḥ avidyā (II – 24) — A causa da identificação do ser consciente com a mente, que desencadeia todo o processo de sofrimento, é a ignorância, avidyā“. Diagnóstico realizado, o remédio, bhaiṣaja, é prescrito: “viveka-khyātiḥ-aviplavā hāna-upāyaḥ (II – 26) — o meio para a remoção (hāna-upāya) da doença da existência é a assimilação do conhecimento discriminativo entre o ser consciente e a mente”. Yoga é essa assimilação. O ser consciente, livre da ignorância, permanece como que isolado, em kaivalya (de quarentena, em linguagem corrente). Ele está saudável.

ajñānatimirāndhasya jñānāñjanaśalākayā ।
cakṣurunmīlitaṃ yena tasmai śrīgurave namaḥ॥

Saudações ao mestre que, aplicando cirurgicamente o unguento do conhecimento, abriu-me os olhos, cegos que estavam pela catarata da ignorância“.

Gurustotram

4 comentários em “Yogaterapia

  1. Ótimo texto.
    Diria que hoje sinto-me menos suco de laranja e mais o observador do mesmo.
    Minha “luta” agora é viver nessa realidade.
    Parece que no decorrer dos acontecimentos do dia, em um determinado momento, o “elefante” nos convence de que somos na verdade o copo, sem nem mesmo o suco de laranja para matar nossa sede de viver.
    Respiramos fundo, lançamos mão de alguns mantras em meio a respiração, daí conseguimos sintonizar novamente com esse Ser.
    Sei lá… acho que estou evoluindo.
    Grato por compartilhar Mestre!

  2. Yoga e chave que abre a porta da felicidade da realidade pura e natural que ja somos.Om gratidas por postarem tao sublimes verdades.

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