A Árvore do Yoga

No começo as montanhas eram só montanhas e as árvores eram só árvores. Depois, quando comecei a prática do Zen, as montanhas não eram mais montanhas e nem as árvores eram mais árvores. Agora, compreendendo o Zen, as montanhas são só montanhas e as árvores, só árvores.

Ditado Zen

Introdução

Desconheço a fonte da citação acima, só sei que quando a escuto fico até os ossos imbuído da pura estética zen que ela evoca. Não sou estudante de zen budismo, apenas pratico meditação e, na minha juventude (só tenho cara de menino), li e reli “Mente Zen, Mente de Principiante” umas boas dezenas de vezes (excelente livrinho). A coisa sempre me atraia pelo seu ar de mistério simples, sua profundidade corriqueira. “Apenas sirva o chá”. “Quando estiver comendo, coma”. É difícil explicar o impacto desse tipo de ensinamento porque parece que, quanto mais nos enredamos em explicações, mais a essência dele nos escapa. É como tentar explicar uma piada: perde-se, irremediavelmente, a graça.

Eu não sou, porém, para a sorte ou azar de quem me lê, um cara zen. Talvez seja a herança racionalista da filosofia ocidental ou de vedānta (nenhuma contradição; a Índia, para os japoneses, é ocidente), mas eu, sofrendo do mesmo mal que Sócrates ou Shankara, sempre acabo querendo escarafunchar o sentido das coisas uma palavrinha adiante. Então, meu zen, me desculpe, mas aí vai uma explicação da piada.


Primeira Parte —  A Missa da Árvore

Tudo é uma mistura de coisa, palavra e ideia. Pensar no mundo significa, normalmente, pensar nesses três elementos em conjunto, sem que eles se distinguam totalmente entre si nem fiquem totalmente misturados, indistintos. Ninguém acha que a coisa árvore é proparoxítona, ou que a palavra árvore faça fotossíntese, ou que a ideia de árvore ocupe espaço ou seja audível.

Tomados por um súbito interesse em árvores, contudo, se quiséssemos investigar seriamente este fenômeno da natureza — a coisa árvore — uma providência primordial seria verificar a etimologia da palavra. Descobriríamos que vem do latim arbos, através do grego “aíro elevar, levantar”, e que vṛkṣa, árvore em sânscrito, deriva de uma raiz com sentido bem semelhante: “bṛh — expandir, crescer” (de onde vem, aliás, o substantivo brahma).

Interessante. As palavras não são cunhadas pela junção aleatória de sons, como nos sugere a imaginação da clássica cena de um homem das cavernas apontando um troço qualquer e dizendo “uga-buga“. Palavras têm um sentido, uma razão de ser. Elas derivam de uma intuição originária daquilo que é nomeado. Depois, quando caem no uso corrente da língua, se desgastam, viram chavões, coisas repetidas por força do hábito sem que se saiba exatamente o que se está dizendo.

Quando, há milhares de anos, um homem particular deu o nome de árvore pela primeira vez a uma árvore, ele assim o fez muito significativamente, num rito quase religioso, batizando a coisa árvore conforme sua natureza mais evidente e mais essencial. Árvore: aquela que se iça aos ares, que se arvora magnânima concedendo a seus súditos, animais e vegetais, sombra, abrigo, ar fresco e frutas que, maduras, parecem cair do céu. Árvore é uma coisa elevada, sublime. (Um bonsai, tome-se nota, é uma árvore em miniatura, e não um arbusto, porque conserva cuidadosamente, em menor escala, a grandeza da árvore. Bonsai é a grandeza em miniatura).

Foi um ato místico, uma missa, sem dúvida, a nomeação da primeira árvore. Logo depois, seguindo o destino decadente de todas as palavras, o nome caiu na boca do povo e árvore virou árvore, essa mesma que você vê todos os dias da janela. Uma coisa comum. Comum significa geral, genérico; algo não destacado em sua particularidade.

Ocorre que de fato não existem coisas comuns. “A coisa mais extraordinária do mundo é um homem comum, uma mulher comum e seus filhos comuns“, dizia Chesterton. Tudo é extraordinário em sua radical singularidade. Mas essa singularidade é o que inevitavelmente se perde no afã humano de legar conhecimento através de palavras, as quais, no processo, perdem seu vigor iluminativo e, como um véu justo, encobrem as coisas mantendo apenas a forma do seu contorno.

Conhecer algo de verdade significa, então, desvelá-lo. Significa seguir a trilha deixada pelas palavras fazendo o caminho inverso da sua cunhagem, num processo de verdadeira engenharia reversa. Trata-se de retornar à experiência intuitiva originária que teve a primeira pessoa a conhecer a coisa, antes que houvesse uma palavra justa para designá-la. Trata-se de ser aquele primeiro homem, em comunhão espiritual com a primeira árvore.


Segunda Parte — Empatia Cognitiva

O Yogasūtra chama essa intuição originária, na qual o homem se põe na presença viva do objeto, de samāpatti (sūtra 40 em diante), que tomo aqui a liberdade (arriscada, como toda liberdade) de traduzir como empatia. Explico-me. Além da aprazível semelhança fonética e da possível familiaridade etimológica (āpatti = pathos?), a palavra empatia possui ainda a seguinte afinidade semântica: samāpatti, no dicionário de sânscrito, significa encontro fortuito e bem-aventurado (samāpatti). E não é, decerto, a empatia um bem-aventurado encontro de corações? Nosso coração sente o que outro coração está sentindo, entende o que ele entende, ri do que ele ri e chora do que ele chora. Há uma sintonia que nos transforma (outro significado dicionarizado de samāpatti), por um momento, no outro.

Pois aqui estamos precisamente a falar de uma empatia cognitiva. Samāpatti, como conceito do yoga-darśana, significa a disposição particular da mente (cultivada pelas sādhanas do yoga) que a permite ser tingida (añjana) pelo objeto, com a mesma passividade e transparência com que um puro cristal (abhijāta-maṇi) se deixa colorir na proximidade de um objeto colorido.

De início, essa empatia cognitiva se realiza misturando coisa, palavra e ideia, numa concepção imaginativa que, apesar de conceitual e imaginativa, corresponde bastante fidedignamente ao objeto mesmo. Este nível de conhecimento é chamado de empatia mediada pelo pensamento, savitarkā samāpatti (ou savicārā samāpatti no caso de um objeto sutil).

Depois, segundo Patañjali descreve de próprio punho, há uma purificação completa da memória (smṛti-pariśuddhi), o que indica o abandono das convenções verbais que herdamos embutidas nas palavras, e nas quais nos fiávamos para conhecer. Há, aqui, a realização daquela engenharia reversa das palavras, de modo a deixar a coisa em si mesma brilhar (artha-mātra-nirbhāsa), como se estivesse destituída da própria forma (svarūpa-śūnyam iva), i.e., despida do aspecto familiar e genérico pelo qual antes a conhecíamos. Este conhecimento direto, não mediado por palavras, é chamado empatia imediata, nirvitarkā samāpatti (ou nirvicārā samāpatti, no caso de um objeto sutil).


Terceira Parte —  A Explicação da Piada

Que é, pois o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei mais…

Santo Agostinho

No começo de tudo, antes de qualquer indagação mais profunda, as coisas são só as coisas. O tempo é o tempo, as montanhas são as montanhas, e as árvores são as árvores. É um conhecimento irrefletido, impessoal, baseado em uma familiaridade enganosa, meramente verbal e convencional.

Mas não pense nesse modo de conhecer como um erro a ser corrigido. Não é. O mundo, afinal, para começar a girar, não poderia esperar que cada um de nós o entendesse de maneira pessoal, íntima. Se para marcar a hora de uma reunião as pessoas precisassem antes deliberar sobre a natureza do tempo, nunca ninguém teria jamais se reunido. A compreensão prévia e impessoal é sempre o nosso ponto de partida.

Há, então, em um segundo momento, o inquérito filosófico. A alegação de veracidade dos lugares-comuns que abundam na nossa cabeça é recusada em favor das coisas mesmas, intimadas a darem seu testemunho. Árvores, segundo o que elas mesmas nos confessam em fórum íntimo, não são meramente árvores. São a Vida, são refrigeradores, são pulmões… É aqui que o mundo ganha um poeta, um filósofo, um cientista. O falatório se transmuta em fala e pensamento próprios, tão prenhes de sentido quanto estranhos para quem deles se aproxime esperando a familiaridade da linguagem pública.

Por fim, há o salto no abismo, o abandono. Um ato derradeiro de amor pelas coisas. As árvores são, enfim, mais do que vida, refrigeradores, pulmões… Coisas que, por verdadeiras que sejam, limitam as possibilidades de uma árvore real. Às vezes, árvores são obstáculos no caminho, outras vezes são pretextos para filosofia. Eis que a mente se expande a ponto de se tornar ela mesmo uma árvore, crescendo e abarcando tudo com sua copa frondosa… É, parece que chegou minha hora. Mal comecei a falar e já estou soando como um mestre zen.

Um comentário em “A Árvore do Yoga

  1. Não há como um aluno comentar o trabalho de um Mestre.
    O máximo que posso dizer, é que ao ler os seus esboços introdutórios, eu me encho de conhecimento.

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